sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

História de vida

(Parte II)

Crise e preconceito (Ver ou enxergar )

O dia-a-dia em sala de aula logo foi revelando as minhas limitações em relação aos demais alunos e à perspectiva da escola. Neste período: décadas de 70 e 80 a educação era marcada pela linearidade, entendia-se por ensinar fazer o aluno escrever repetidas vezes no caderno o que a professora escrevia no quadro e para mim esta era uma tarefa muito difícil, praticamente impossível. Sempre me sentava na primeira carteira, logo à frente, próxima da professora, as carteiras eram conjugadas, mas não conseguia acompanhar o rendimento da turma, sempre estava atrasada e quase sempre não conseguia cumprir com as atividades. Não demorou muito e as críticas começaram e com esta, também a discriminação. Lembro-me de tentar copiar do colega do lado e ele colocar o seu braço na frente do caderno, para que eu não copiasse dele, às vezes, eu me levantava e tentava copiar o quadro com o caderno apoiado na parede junto ao quadro, mas a professora não gostava, pois ficava atrapalhando o movimento dela na sala de aula. As minhas letras eram grandes, feias e quase sempre escrevi acima da pauta do caderno. A professora algumas vezes, pegava o meu caderno e levantava à frente da sala para exemplificar como não deveria ser feito. Sua fala era mais ou menos assim: “Isso é letra de gente? Que coisa horrível! Para que serve a margem? Você não está enxergando que não está sobre a margem?” O meu sentimento era de incompetência, e naquele momento, eu não seria capaz de expressar este sentimento, então ficava calada, praticamente, durante todo o tempo.

Durante este período já vivia problemas em casa. Meu pai estava cada dia bebendo mais e eu tinha medo dele, ele tornou-se um homem muito agressivo, qualquer atitude que ele não aprovasse era motivo para nos bater. Lá em casa tinha uma palmatória (um artefato de madeira com a ponta arredondada que era usada para bater em crianças) nos juntamos, eu e os meus irmãos, para jogá-la fora, mas tínhamos muito medo da resposta de “painho”, quando descobrisse. Resolvemos escondê-la. Decidimos que, se as coisas se complicassem... “acharíamos” a tal palmatória e devolveríamos para ele. Um dia, quando ele procurou e não a encontrou disse que isso não nos impediria de tomar a tal surra, saiu e pegou um escovão de engraxar sapatos com a base em madeira e todos os três apanhamos muito, não me lembro nem o porquê da surra, só sei que elas eram cada vez mais freqüentes. Certo dia, neste período eu deveria ter 8 anos, Iuri 10 e Ivana 6, estávamos jogando dominó à mesa da sala, de repente painho chegou e disse que deveríamos acabar com o jogo (ele estava embriagado naquela noite, como de costume), ao guardar as pedras percebemos que faltava uma e ele disse que tínhamos que achar a pedra do dominó que faltava senão todos íamos apanhar. Nervosos procuramos e não a encontramos. Ele pegou uma raquete de madeira de jogar ping pong e começou por Iuri que tomou 6 bolos, três em cada uma das mãos e fui a segunda que também tomei os 6 bolos, lembro-me de que o mais difícil não era suportar a dor, que era muito grande, mas era terrível ter que abrir a mão para que ele batesse, a sensação de impotência nos fazia ter consciência que a palmatória não era o nosso maior problema. Ele sempre arrumaria um jeito, Ivana seria a terceira, após o segundo bolo a raquete quebrou ao meio, não resistindo com o impacto em nossas mãos.

Era doloroso para mim, tão criança, compreender por que as coisas eram daquele jeito. Tornei-me uma criança insegura, medrosa. Sentia-me incapaz e isso se agravava com a realidade vivenciada na escola.

Estava na segunda série primária e todos os anos eu fazia recuperação de todas as matérias, não conseguia boas notas e era discriminada por todos na sala, à exceção de uma menina que se chamava Natalina, ela era a única criança da sala que sentava ao meu lado. Ríamos juntas, Natalina também era muito descriminada pelo restante da sala, pois tinha um problema nas mãos que a fazia suar sem parar, não era pouco o suor, ela sempre estava com um lenço nas mãos, mas, mesmo assim seu caderno era todo borrado, molhado, manchado, às vezes chegava a furar por causa da umidade e a professora também usava o caderno dela para dizer como não deveria ser um caderno de criança.

Naquele ano aconteceu algo que marcaria toda a minha vida, minha mãe tinha posto um lanche em minha merendeira, de que eu gostava muito e fui à escola ansiosa para que chegasse a hora do intervalo para lanchar. Quando tocou a sirene do recreio rapidamente abri à merendeira e alguns meninos viram o delicioso sanduíche que minha mãe tinha feito, o nome deles era Raulindo e o outro André, eles pularam em meu lanche e a minha resistência foi inútil, pois comeram-no, tudo isso aconteceu diante dos olhos da professora, que não interveio, apesar dos gritos que dei pedindo ajuda. Triste, fiquei quieta até o fim da aula, quando finalmente meu irmão chegou para me buscar (Iuri tinha apenas 9 anos de idade, mas íamos juntos e sozinhos para casa, que não ficava longe da escola), todos os colegas ainda estavam na sala e a professora Lúcia, chamou Iuri à frente da sala e disse para ele: “ Diga para sua mãe, levar esta menina ao médico para fazer um exame na cabeça. Ela não é normal, essa menina é louca”, todos riram, inclusive meu irmão. No caminho de casa meu irmão ia me abusando, brincando (uma ação tipicamente de criança) e cantando assim: “Você é maluca, você é maluca!” Eu comecei a chorar, mas, agora para mim tudo fazia sentido, lembro-me claramente deste momento, comecei a pensar: “Então é por isso que não consigo ser igual aos outros colegas, sou doente da cabeça e a professora que sabe de tudo, sabe disso”, era uma sensação de descoberta e profunda tristeza, mas agora eu sabia que não adiantava tentar, eu sempre seria inferior aos demais colegas. A partir deste dia, eu não mais me importava, quando os colegas de sala riam de mim ou quando a professora pegava meu caderno para falar como ele era feio, tornei-me passiva e as notas pioraram ainda mais.

Durante a terceira e quarta séries tive uma nova professora e eu gostava dela, seu nome era Valdimira. Uma vez, eu a ouvi conversando com a “pró” Lúcia, que perguntava: - Não entendo como essa criança pode estar na quarta série com tanta defasagem. Valdmira respondeu: – Não posso fazer nada, se ela obteve nota na recuperação. Ouvir isso me fez sentir orgulho de ser capaz.

Durante a quarta série, muitas coisas aconteceram que começaram a mudar minha história. Meu irmão tinha apresentado um problema nos olhos, pois sempre estava lacrimejando e minha mãe resolveu marcar um oftalmologista para todos os filhos de uma só vez. Primeiro, o oftalmologista consultou Iuri, que não tinha problema algum de visão, o médico receitou um colírio para ele, depois foi a minha vez, o médico ficou bravo quando me examinou e falou duro com minha mãe, “a senhora nunca percebeu que essa menina tem problema de visão? Ela nunca foi a um oftalmologista antes?” Não! _ respondeu minha mãe. Ela sempre assiste à televisão com a cadeira junto a TV, mas sempre achei que era porque ela tinha preguiça de levantar para mudar de canal _concluiu minha mãe. O diagnóstico do médico revelava minha deficiência, não mental, mas, visual. Ele disse que muito provavelmente eu já havia nascido míope, porém, por não ter usado óculos minha miopia se agravou de maneira degenerativa e com 7 anos eu já havia perdido cerca de 30% da visão do olho esquerdo e apresentava ainda miopia alta e astigmatismo que se somavam a um estrabismo visível e tornava minha visão extremamente limitada, o que no futuro me levaria a fazer duas cirurgias, e comprometeria minha visão pelo o resto da vida.

Mas, aquela notícia fez-me perceber mais do que a qualidade de visão que no momento eu tinha com os óculos, pude entender que todas as crianças tinham uma visão melhor e isso justificava como elas conseguiam copiar tão rapidamente do quadro as atividades, e finalmente eu passei a enxergar as linhas do caderno, percebi que não precisava escrever tão grande para ler depois e isso fez com que eu me sentisse melhor, mais capaz e quem sabe “Normal”.

Bons professores têm uma boa cultura acadêmica e transmitem com segurança e eloqüência as informações em sala de aula. Os professores fascinantes ultrapassam essa meta. Eles procuram conhecer o funcionamento da mente dos alunos para educar melhor. Para eles, cada aluno não é mais um número na sala de aula, mas um ser humano complexo, com necessidades peculiares.[1]

É preciso discutir a atitude dos meus professores e até mesmo dos meus pais em função do fato ocorrido. Primeiro, eles enxergavam menos do que eu, pois com olhos saudáveis não foram capazes de perceber a minha deficiência visual. Segundo, a atitude que tiveram no que se refere ao papel de educadores, prejudicou boa parte de minha formação acadêmica e moral, diante dos estigmas que foram colocados sobre mim. Prefiro deixar por conta dos leitores outras possíveis considerações sobre o fato, reconhecendo que posso ser tendenciosa em avaliar os fatos ou até mesmo injusta com as partes em questão.



[1] CURY, Augusto. Pais brilhantes, Professores fascinantes: A educação de nossos sonhos: formando jovens felizes e inteligentes. P. 57

2 comentários:

  1. Pais e educadores deveriam ter postura melhor em relação a fatos como esse. Expor a criança dessa forma fará com que leve traumas fortes, quem sabe, até o fim de suas vidas.
    Destaque para a consideração sobre enxergarem menos que a própria criança com deficiência visual!

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  2. É verdade Soane é para as crianças os pais e professores são referencia no mundo, isso torna superdimensionado qualquer informação. Por isso a bíblia nos ensina que a palavra proferida pode ser benção ou maldição.
    Um abraço

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